Quando Angelina Mango venceu o Festival de Sanremo no ano passado, a principal comemoração foi o fim do estigma machista que o evento carregou por uma década. Antes dela, a última vencedora solista tinha sido Arisa, em 2014 – Victoria de Angelis venceu como integrante do Måneskin em 2021.
Tudo apontava para mais uma vitória feminina nesta temporada. Favorita absoluta da imprensa e líder nas casas de apostas, Giorgia tinha tudo para repetir seu triunfo de 30 anos antes, agora com La Cura Per Me. Sua interpretação visceral deu a força necessária para uma letra quase pueril de amor escrita por Blanco.
Não foi apenas a derrota em si que causou estranheza entre o público que acompanhou as cinco noites do evento. Giorgia ficou com a sexta colocação, posto muito aquém do esperado e merecido. E não há conta que explique essa “queda de rendimento”. Olly e sua Balorda Nostalgia ficaram com a vitória. Música comercial, uma apresentação correta, mas sem aquele peso de vencedora de Sanremo. Faltou ao jovem o que sobrou na veterana: sensibilidade.
Mas, olhando a classificação geral, a análise é muito mais profunda. Um TOP 5 100% masculino e uma espécie de desprezo implícito para as propostas femininas foram a tônica do ano. Em nenhum lugar do mundo, Gaia teria ficado na última colocação do televoto, atrás da pífia atuação de Rkomi, por exemplo. Misoginia salpicada de xenofobia?
E como explicar que Noemi, mais uma vez, tenha ficado perdida no meio da tabela. Assim como Elodie, Francesca Michielin, Joan Thiele, Serena Brancale, entre tantas outras mulheres, que levaram ao Teatro Ariston propostas muito mais agradáveis e inovadoras do que os velhos dinossauros da música italiana como Massimo Ranieri ou Modà. E com todo o perdão do etarismo, se a briga ficasse apenas entre os 60+, justiça seja feita, Marcella Bella e sua vitalidade não mereciam a lanterna da competição, ainda que Pelle Diamante seja uma música datada.
O Festival de Sanremo despreza as mulheres.
No país governado por Giorgia Meloni, as mulheres estão para compor, não para ganhar, por mais que discurso e ação sejam discrepantes para a líder do partido Fratelli d’Italia, que prega aquela coisa do bela, recatada e do lar para a tradicional família italiana.
Sua chegada ao poder, em outubro de 2022, foi determinante para a saída de Amadeus do comando do Festival de Sanremo. Carlo Conti assumiu deixando claro que assuntos polêmicos, como imigração, questões sociais ou sexualidade, não seriam permitidos sob sua “tutela”. Ele achou de bom tom maquiar os problemas do país com mais letras água com açúcar e “de bem”, com raríssimas exceções (Fedez e Lucio Corsi entram nessa conta). Acabou escancarando uma ferida muito mais profunda.
O resultado fez com que as artistas do festival promovessem uma espécie de rebelião no Domenica In, principal programa pós-evento. E não espantaria que o movimento iniciado com os números do Teatro Ariston culminassem em um grande boicote em 2026. Afinal, qual artista com carreira consolidada vai se prestar a viver o que Giorgia viveu em uma semana? Só aquelas que fazem campanha para a primeira-ministra (oi, Arisa!), sem se importarem com a imagem que estão passando para o mundo.
Olly ainda não sabe se vai ao Eurovision Song Contest. Dark horse, o jovem já tinha a agenda cheia para o mês de maio. E na Basileia não será permitido o uso de autotune, um dos seus trunfos no Ariston. Caso decline do convite, a vaga deve ficar com Lucio Corsi, e não seria injusto. Mas justo mesmo seria que, ainda como prêmio de consolação, a Rai decidisse levar uma das mulheres do festival.
Não foi um Sanremo ruim. Mas não foi um Sanremo equitativo.
Tal e qual a Itália dos novos tempos.